No ponto do mapa onde surge o Inverno, chuva, frio e vento, sem poder usar guarda-chuva, o futebol abre a sua porta competitiva mais traiçoeira. Esqueçam os Oásis e as miragens. Chegou a hora da verdade. Onde os jogos não admitem grandes especulações tácticas. Onde os jogadores deixam cair todas as máscaras. Sinceridade total.
Também para os treinadores. Perante as palavras receio ou coragem, eles não podem hesitar. Seguindo estes indicadores, quatro pontos podem ser “mentalmente” mais do que quatro pontos.
O exercício a fazer para perceber o momento actual das equipas não deve, portanto, começar por essa simples constatação matemática.
Porque ainda existe muito caminho (muitos jogos) para percorrer, o importante é perceber como Jesus e Jesualdo podem conduzir cada exército (a equipa de futebol, claro) pelas trevas do inverno até ao destino final. Pelo meio, um intruso que também maneja os quatro pontos de avanço. O Braga de Domingos, o líder que ninguém ainda olha de frente. No futebol, como na vida, demora tempo para perceber-se que um “desconhecido” (futebolisticamente falando, a chamada equipa-sensação) está a falar a sério. Por isso, Benfica e FC Porto continuam a sentir-se (e a serem vistos) noutra dimensão na questão do título.
Primeiro ponto para deixar claro: Este Benfica vale hoje mais quatro pontos do que o FC Porto. Claramente. Disse-o o jogo da Luz, tem-no dito o campeonato. Na origem da diferença, a construção da equipa. O treinador e o seu laboratório. Uma equipa como um tubo de ensaio onde vai metendo diferentes compostos químicos (leia-se estilo de jogadores) até formar uma fórmula eficaz (leia-se equipa e forma de jogar). Por isso, faltaram os chamados titulares “indispensáveis”, e o modelo de jogo (pressão alta, recuperação e saída rápida para o ataque) e sistema (um 4x1x3x2 sempre altivo mas sem qualquer pretensão de ser um losango) continuaram a funcionar.Com a invenção de Urreta a surgir numa ala. Com Saviola a surgir nos espaços da “casa vazia” de Aimar, o arquitecto ausente. Com Carlos Martins a lutar, descarregando as emoções na táctica. E ganhou. Naturalmente.
Com um golo solitário mas que nos caminhos dos 90 minutos marcou sempre uma distância maior.
Jesus à chuva. 90 Minutos. Jesualdo no banco, escondendo-se dos pingos. 90 Minutos, outra vez. São apenas duas imagens, claro, mas já se sabe como as imagens têm muita força. Não acho que valham, por mil palavras, Mas valem por alguma coisa. Isto é, podem dizer muita coisa. Neste caso, disseram como o actual FC Porto vive longe, muito longe, da sua própria personalidade.
A equipa estava a melhorar, sem duvida, mas ninguém podia melhorar tanto em apenas uma, duas semanas. Não melhorou e o jogo da Luz mostrou a razão dos quatro pontos de diferença. O 4x3x3 continua lá.
É um bom princípio. A capacidade para o tornar em 4x4x2 é que é mais difícil. E isso, nos grandes jogos, é decisivo. Hulk vive o jogo como uma sucessão de aventuras individuais. Varela joga tão bem quando joga mesmo, no relvado, como quando fica no banco e todos imaginam o que seria com ele no jogo. É o pior sinal que uma equipa pode dar. Meireles não tem força para agarrar sozinho o meio-campo e Belluschi continua ser o “o elo perdido” que podia dar outra criatividade a toda esta cadeia futebolística.
O Campeonato, claro, ainda não acabou. Falta muitos jogos. 16 “caixas” de 90 minutos para abrir e ver o que está lá dentro. Neste momento, porém, uma coisa é evidente: terá de estar algo de muito diferente para, falando da luta entre estes dois gigantes do nosso futebol, o destino final do campeonato ser diferente do que seria agora.
O novo “gladiador”
Nunca existiu uma grande equipa, sem, para além dos artistas e dos operários, emergisse, por entre o onze, o chamado “jogador dos jogadores”. Aquele que consegue uma relação de comunhão diferente com os adeptos, mais próxima, no grito como na telepatia, porque, no fundo, ele, em campo, joga como se fosse um deles. No actual Benfica, esse “moicano” é David Luiz, o novo “gladiador” da Luz.
Mais do que um simples defesa, é a alma da defesa. Cada corte, carrinho ou antecipação, cada vez que sobe num lance de bola parada, é, antes de um gesto técnico ou táctico, um estado de espírito que agarra a bancada.
Nos últimos tempos, cresceu a ideia que estava a ultrapassar os limites da agressividade. Que fazia faltas a mais e os árbitros até “fechavam os olhos”. Penso que uma coisa é clara: os seus níveis de agressividade aumentaram incrivelmente. A confiança também.
Regressou após longa lesão e resgata esse tempo perdido em cada jogada que disputa. Por vezes, com “osso” a mais, sem duvida. Entradas mais durinhas, a perna que se solta, mas não me parece futebolisticamente honesto colocar a essência do seu jogo nesse estilo. Essa essência tem outras palavras para a definir e elas estão na personalidade, classe e autoridade, igual com ou sem bola.
E é rápido. E joga bem de cabeça. Ainda só tem 22 anos e já ninguém lhe dá ordens. Um gladiador para as melhores arenas de relva da Europa.





