Tenho uma bola dentro da cabeça que condiciona o meu pensamento no dia a dia pelo que fico contente quando as memórias despedem a urgência do presente. Para compreender um grande jogo de futebol, em qualquer época, temos de nos afastar do ruído que o envolve (mesmo do resultado). Só assim se explica que com o passar das gerações um conflito tão radical a cada jogo, gere depois um amor tão incondicional.
Se pensar no meu tempo de vida a ver futebol e tivesse de eleger as duas melhores equipas para ver frente a frente num Benfica-Sporting, escolheria o Sporting de 81/82, aquele treinado pelo inglês Malcolm Allison, o efusivo “Big Mall”, com Meszaros na baliza, Eurico elegante na defesa, e na frente um trio mágico com Oliveira (maestro), Jordão e Manuel Fernandes (goleadores) que faziam de cada ataque uma aventura de arte e golo, contra o Benfica de 82/83, o treinado por Eriksson, então jovem técnico sueco acabado de chegar com ar de professor de matemática e um chapéu da Macieira. Era o onze com o Humberto patriarcal na defesa e craques como o Alves, Nené, Chalana, e depois estrangeiros, de toscos a ídolos, como Stromberg e Filipovic.

Os estilos nem eram, em fase dos jogos, muito diferentes tal a preferência de Eriksson pelo futebol britânico (o Liverpool dos anos 70 e o triângulo velocidade-técnica-táctica). É incrível. Estas equipas, mentores e jogo espetacular, estiveram nos nossos relvados em épocas seguidas, mas não se defrontaram.
Allison era uma figura polémica (no Sporting-Benfica de 82 foi antes do jogo começar sozinho até ao centro do relvado e aí levantou os braços a puxar pelo publico). Após ganhar Campeonato e Taça sairia, em litígio, no estágio da época seguinte. Oliveira ficou como jogador-treinador. Fez jogos épicos (como o dos três golos ao Dínamo de Zagreb, claro) nessa condição hoje impensável. A equipa já não era, porém, a mesma na cabeça. Entretanto, começara na Luz a revolução metodológica de Eriksson no futebol português e o novo domínio do Benfica.

Jordão terá sido o ponta-de-lança estilo avançado-centro que mais gostei de ver jogar no futebol português. Se Gomes e Nené eram o golo como poder de finalização, o último remate letal de cabeça (Gomes) ou a encostar sem sujar os calções (Nené), Jordão tinha tudo numa elegância de movimentos felinos. Instintivo, predador da área, tinha o porte atlético duma gazela, pernas arqueadas, quase em bicos de pés, ora cobrindo a bola, ora preparando o remate. Era um produto da magia africana. Como ele terminaria, aliás, a grande dinastia de goleadores ultramarinos na seleção portuguesa, por onde passaram, sucessivamente, Peyroteo, Matateu, Eusébio e, claro, Jordão. Em 74, com o 25 de Abril, o filão africano fechou-se.
Embora pertençam a épocas distintas, tento nunca renegar qualquer versão sentimental da visão do futebol. Sinto que os tempos modernos trouxeram outro tipo de jogadores. Será da minha cabeça ou do menor romantismo adolescente como olho para eles. Talvez.
Mesmo assim, na devoção pelo jogadores que, como gosto de dizer, imagino a treinar sentados numa bola a meio do campo, só imaginando por onde devem correr, ou a traçar mentalmente as coordenadas certas para os passes longos precisos que farão no jogo, Rui Costa foi o último nº10 com perfume “à moda antiga” do nosso futebol puramente português.
Tinha coisas de Oliveira e outras de Alves. Será imaginação minha mas via nele diferentes gerações a fazer da bola o que queria enquanto instrumento de... jogo. Arquiteto que via as coisas à frente.
Numa altura em que as fronteiras se esbatiam, saiu cedo demais dos nossos relvados. Aconteceu com muitos e, assim, a partir de meados dos anos 90 deixamos de ver heróis anos infinitos com o mesmo emblema, até se confundirem com ele, no mesmo clube.
Um choque do coração do futebol com o sentimento de “amor à camisola”.
