“Eu não quero jogar feio!”

05 de Julho de 2016




A questão pode ser posta de forma simples: a seleção da Islândia desafiou os seus limites e... os limites ganharam. Tentou jogar da mesma forma mas desta vez o seu bloco de gelo abriu fendas desde o inicio entre os oito jogadores que (no seu 4x4x2 clássico) colocava como um iceberg táctico à frente da sua defesa. Não aconteceu, porém, por acaso. Teve quem as provocasse.

O “glamour” do jogo francês surgiu por fim quando Deschamps se deparou com uma... ausência. Faltava-lhe o trinco-pivot Kanté e assim desfez o seu trio muscular do meio-campo para passar a jogar num 4x2x3x1 que, num ápice, soltou a equipa para “outro futebol”.

No comando dessa nova ideia de jogo um duplo-pivot sem rédeas que saia alternadamente para o jogo com potencia e técnica: Matuidi-Pogba, abrindo depois com o poder da passada larga de Sissoko na direita, as diagonais de maestro Payet desde a esquerda e Griezmann, por fim, bem enquadrado no meio em torno de Giroud, ora entrando desde trás, ora combinando com o clássico 9 gaulês.

Desta forma, o onze deixou de ter a espécie de “perna torta” que revelara na anteriores expressões dum 4x3x3 descompensado sobre a faixa direita porque Griezmann fixava-se no centro e Pogba não descaia em posse (ficando só dependente das subidas do lateral Sagna).

Não sei se a França vai rotinar esta nova forma de jogar. O desafio de o fazer contra a Alemanha coloca-a perante o receio de perder o controlo muscular do centro do terreno, mas no plano da posse e da visão ofensiva não existem dúvidas que é este o sistema e dinâmicas que fazem a equipa jogar melhor.

É possível também criar equilíbrios defensivos a partir desta versão em face da capacidade de recuo defensivo de Sissoko, mesmo fechando um pouco mais por dentro sem bola. Não existe, porém, tempo para criar essas rotinas de jogo. O risco de o fazer frente à “sala de máquinas” alemã pode fazer Deschamps regressar à fórmula-Kanté.

É mesmo um Euro estranho entre o perturbador debate de “jogar bonito ou feio” (seja o que isso for). A França já mostrou essa duas expressões mas, no momento mais difícil, é tão natural como desolador que volte a ver a melhor solução na versão mais carrancuda.

O “trinco-lenhador”

A sua imagem invoca as batalhas mais épicas. Longas barbas, braços tatuados, dentes cerrados e potencia muscular para defender o seu território de qualquer ameaça. Ao mesmo tempo, sabe como cativar todos que o rodeiam e, no fim, na paisagem depois da batalha, reuni-los para um grito de unidade. Tudo isto tem expressão futebolística. No relvado, durante o jogo, e ainda no relvado, após acabar. É o carisma e discurso de um médio-centro que até agora passou anónimo como mais um jogador-operário na divisões secundárias inglesas (oito épocas, entre Cardiff e Coventry).

Aron Gunnarsson tornou-se uma espécie de “líder espiritual” da Islândia, na táctica e com os adeptos. Está apenas com 27 anos pelo que não custa crer que após este Euro épico lhe surjam outros locais (clubes) para todas estas suas “expressões de futebol”.

Claro que tudo isto que aconteceu nos relvados franceses teve um habitat especial. Não pode, no entanto, ser apenas produto de um mês de inspiração em combate. Por vezes, há jogadores que passam toda uma carreira sem dar o salto porque nunca perceberam como explorar o seu verdadeiro valor, isto é, a sua natureza. Como a do trinco “lenhador táctico” Gunnarsson.